segunda-feira, 4 de abril de 2011

D. Judith...

Dentre as várias recordações que tenho da minha infância, as mais fortes tem a ver com pessoas. Já falei aqui por diversas vezes dos ensinamentos do meu avô, do cheiro da cozinha da minha avó, dos passeios no sítio e brincadeiras nas ruas. Mas por trás disso, haviam pessoas muito importantes. 
E uma delas era uma negra, forte e sempre com o sorriso no rosto. Vinha da cidade de Gouveia, no interior de Minas, como várias outras que trabalharam nas casas dos meus tios, dos meus avós e na minha própria casa.
Pessoas completamente devotadas à nossa família, de confiança e muito boas de trabalho.
Judith me criou, desde pequeno e, durante toda minha vida, foi embora e voltou com a mesma paixão e dedicação a todos nós.
Era apaixonada pelo jogo do bicho, que tentou me ensinar sua lógica e a relação dos números da loteria com o tal jogo. Nunca aprendi... Era a cena mais comum do mundo vê-la fazendo uma "fezinha" e escutando pelo rádio o resultado na parte da tarde. Fumante inveterada, era constantemente interpelada pela minha mãe em discussões pra lá de divertidas. Tinha tanta liberdade com nossa família, que era uma das poucas a ter livre acesso a todos os quartos, em qualquer horário. 
Tinha crises de insônia e por isso, não era incomum vagar pela casa no meio da madrugada, em completo silêncio e no escuro para ver se tinha alguém acordado para puxar um papo. Ganhou da minha mãe o apelido de "assombração".
Por ter vindo do interior, mas interior mesmo, tinha várias crendices que, ao lembrar, fazem abrir um sorriso imenso no meu rosto: não podíamos deixar o chinelo virado, porque senão o pé ficava torto, não se podia apontar para as estrelas, com o risco de nascer uma verruga na ponta do dedo... Quando acabava a luz era um terror! Ela ficava indignada de nos ver brincando com as sombras das velas, dizia que invocávamos espíritos...
Atleticana doente, lembro bem do seu rádio de pilha ligado na Itatiaia o dia inteiro. 
Não se esquecia da religião, e se trancava por horas a fio no quarto, a fim de rezar o terço. E ai de quem interrompesse!
Nas passagens de minha memória, uma se tornou mais marcante: depois de anos na sua cidade natal, voltou para nos visitar e ao vê-la, corri para abraçá-la e lhe dei um beijo na testa. Ela logo se afastou e fez cara de brava me dizendo:
-Preto não se beija! - resquício de sua lembrança de infância, onde foi criada no mundo que ainda havia segregação racial.
Não me dei por rogado e lhe passei um pito. E dei outro beijo!
Sua paixão por nós era tamanha, que batizou seu filho com meu nome e sua filha com o nome de minha avó: Sílvia.
Nos últimos anos, o que mais marcou foi sua luta contra um câncer. Que, nos seus momentos de consciência, não tirou seu sorriso e bom humor.
D. Judith foi embora no último domingo, deixando em mim enormes saudades de uma pessoa que nunca cobrou nada para me admirar e amar incondicionalmente.
O mínimo que posso fazer é eternizar sua memória e dividir esses sentimentos com todos os leitores, esperando que todos tenham tido pelo menos uma pessoa assim na vida. Dói muito...
Descanse em paz, minha protetora!

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